Acabo de ler A Elegância do Ouriçode
Muriel Barbery, escritora francesa, que encanta com um texto divertido e
irônico. A história se passa num elegante bairro de Paris e é narrada
por duas personagens diferentes: conhecemos Paloma, uma adolescente
esperta, que percebe mais do mundo à sua volta do que deixa
transparecer, principalmente em relação à sua família, aos seus amigos e
à sociedade em geral; e Renée, zeladora do edifício onde Paloma mora,
leitora inveterada, bastante mordaz, que tem sempre uma resposta pronta
para qualquer ocasião, que também percebe à sua volta muito mais do que
os moradores do edifício lhe dão crédito. É através dos olhos delas que
somos apresentados a uma gama de moradores do prédio, parisienses com
suas maneiras de viver, congeladas por séculos de civilização. Vemos
também o quanto têm em comum estas duas personalidades que se revelam
através da narrativa. ——–A história se passa quase inteiramente no
edifício à Rua de Grenelle, 7, onde ambas residem. Paloma e Renée passam
a vida preocupadas em apagar os traços de suas existências e têm
bastante sucesso em se tornarem quase invisíveis aos outros, apesar de
terem vidas interiores muito ricas e de quase não perderem nada do que
acontece ao seu redor, principalmente quanto às intenções das pessoas
que conhecem e seus preconceitos. Elas se protegem contra qualquer
indiscrição, contra qualquer comportamento, que possa levá-las a serem
descobertas, que possa revelá-las como as pessoas sensíveis que são
inteligentes, cultas e mordazes na caracterização dos habitantes do
edifício e da sociedade francesa em geral.—-
—-
Os capítulos do livro, com as impressões de cada uma, são
intercalados e assim sabemos de seus pensamentos mais íntimos. Eles nos
orientam na narrativa. Visualmente o livro também é dividido. Cada
narradora tem seu texto em tipografia diferente, facilitando o
reconhecimento das diferentes vozes narrativas. Paloma e Renée são ambas
pessoas que não se encontram nem se enquadram entre a maioria na
sociedade. E lá pelas tantas acabam estabelecendo uma amizade entre
elas, atravessando barreiras culturais e sociais estabelecidas há
séculos e descobrem que têm muito em comum quando percebem e analisam o
mundo à sua volta.—
Só são descobertas por um novo residente, um oriental, um japonês,
que se muda e passa a viver neste abrigo de alto luxo da burguesia
parisiense. Sua chegada ao edifício causa muita curiosidade da parte de
seus moradores mais tradicionais. Ele, no entanto, assume que é
realmente uma pessoa de fora, apesar de usar precisa e corretamente a
língua francesa. Como um estranho no ninho, por assim dizer, como uma
pessoa de fora, que não precisa nem saber, nem se limitar às regras
sociais estabelecidas, ele consegue estender sua amizade às duas
mulheres que conhecemos, compreendendo-as e deixando suas personalidades
florescerem.—
O livro é cheio de observações de muito humor sobre a vida moderna;
divertidas descrições do que é esperado no comportamento de cada um e
irônicas coincidências que geram preciosas observações sobre literatura,
escrita, envelhecimento, psicanálise, e muitos outros aspectos do dia a
dia atual. Tudo isto vem bem empacotado numa maravilhosa escolha de
vocabulário, contrastes irônicos e num tom jocoso, sem igual. Eu me
achei não só sorrindo, mas em algumas ocasiões rindo comigo mesma, para
espanto de qualquer pessoa próxima, com as divertidas observações de
Paloma e Renée. E se você é uma dessas pessoas, como eu, que gosta de
marcar uma passagem particularmente irônica, ou que seleciona uma frase
espetacular, que sublinha seu livro a lápis, para poder voltar mais
tarde e encontrar um trecho específico, é melhor ter uma apontador
próximo e um lápis ao alcance da mão, porque você acabará se resignando a
um livro cheio de anotações e de marcas de colchetes e parênteses.
–
—
Muitas vezes, durante a leitura, eu me encontrei pensando nos quadros
do pintor belga René Magritte. As observações de Paloma e Renée são tão
bem colocadas que se parecem com a superimposição de imagens
característica dos trabalhos de maior humor e ironia do pintor. É só nos
lembrarmos de um de seus quadros [ele fez muitas versões do mesmo] mais
conhecidos: Ceci n’est pas une pipe, [Isto não é um cachimbo]
para entendermos como trabalha o humor presente neste livro de Muriel
Barbery. Magritte, assim com Renée e Paloma, está sempre brincando com o
significado das palavras ou com o significado das imagens, colocando-as
juntas e nos obrigando, frequentemente, a pensar visualmente por causa
de suas justaposições.
E me pergunto se a autora não teria homenageado o pintor já que uma
das personagens principais se chama Renée, a forma feminina do primeiro
nome de Magritte. Tão jocoso quanto os nomes que a autora escolheu para
as duas irmãs, moradoras do prédio, Paloma e Colombe, que têm como seus
primeiros nomes duas palavras com o mesmo significado: pomba, em línguas
diferentes. Esta possibilidade ainda se torna mais crível quando nos
lembramos de que a autora é professora de filosofia e certamente estaria
familiarizada com os trocadilhos visuais que Magritte se empenhou em
aprimorar. No final do século XX, os quadros deste pintor ilustraram
muito conceitos de filosofia e linguística. Tenho certeza que na próxima
vez que vier a ler este livro ainda serei capaz de encontrar mais
“coincidências” interessantes que me escaparam na primeira leitura.
Leio muito. E faz algum tempo que não encontro um livro que me
deixasse tão encantada, tão absorvida. Recomendo com muitas estrelas. É
definitivamente um livro para quem gosta de livros e de ideias.
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